'Vejo a música como um organismo vivo', diz Humberto Gessinger
05/08/2016 13:59 em Música

 

Quem já assistiu a shows de diferentes turnês de Humberto Gessinger sabe que ele não costuma repetir arranjos de uma apresentação para outra, às vezes nem mesmo partes das letras. "Eu naturalmente tendo a ver a música como um organismo vivo", diz o eterno líder dos Engenheiros do Hawaii.

 

No show desta sexta-feira, dia 5 de agosto, no Net Live Brasília, ele mostra novas roupagens para sucessos, volta a tocar "Pra ficar legal" e "Faz parte", que estavam fora do repertório em temporadas anteriores, e ainda prepara blocos para celebrar os 30 anos do primeiro disco dos Engenheiros, "Longe demais das capitais", e os 20 anos do disco "Humberto Gessinger Trio".

 

Acompanhado do baterista Rafa Bisogno e do guitarrista Nando Peters, o cantor toca baixo, teclados, guitarra, acordeon e harmônica.

 

O formato "power trio", como nos primeiros anos dos Engenheiros e na turnê que promoveu o único trabalho solo de Humberto, "Insular", de 2013, tem deixado o músico satisfeito. "Essa limitação do trio na verdade me fazer sentir muito mais livre, me localizo melhor. Com essa volta ao formato eu me liberto."

O cenário é novo, assim como os adereços do uniforme dele. Sucessos como "Infinita Highway", "Pra ser sincero", "Eu que não amo você", "Refrão de bolero", "Somos quem podemos ser", "Piano bar", "Ando só", "Dom Quixote", "Terra de gigantes" e "Exército de um homem só" ganham a companhia de "Alexandria", novidade no repertório, parceria do gaúcho com o cantor e compositor Tiago Iorc.

Retalhos

A ideia de modificar a estrutura das músicas, de improvisar, inserir novos elementos e achar novos formatos durante o show ao vivo tem como origem trabalhos de artistas que são considerados por Gessinger referências em sua formação, como o Pink Floyd e outros nomes do rock progressivo.

 

"Roger Waters é um dos pilares. Acho que tem isso de ouvir mais pelo compositor do que pelo intérprete, com criações espetaculares. A música pop permite isso, de algo grande que não necessariamente preza pela técnica", diz.

Transitando por vários instrumentos, sendo especialista em alguns deles, como o baixo, Gessinger parece não se satisfazer com a nota encontrada para terminar a canção. Nos shows e nas regravações, ele retorna pelo caminho e recria a paisagem musical, como quem desenha e apaga um quadro.

 

"Não tenho muito essa coisa de tocar uma música, encarar como música clássica, respeitar muito [a estrutura]. Naturalmente sou do tipo que tem uma visão da canção como os músicos de jazz tem, embora eu não toque jazz, da música como algo vivo mesmo, que se transforma", afirma .

 

"Canções são quase que construídas em várias fases, vão surgindo como canções novas. Neste show eu faço um lance com 'Dom Quixote' e 'Alívio imediato'. Isso é meio como eu vejo a música. No show, mesmo com canções de vários discos, eu busco uma certa unidade. Eu vejo o álbum, por exemplo, como uma coisa só. Acho que eu tento ligar as canções e buscar conexões."

 

Se por um lado Gessinger cria jeitos diferentes de tocar as mesmas composições, por outro é sempre fácil encontrar trechos de obras dele, letras, harmonias e arranjos, em uma ou outra música do show ou dos discos. É como se ele recortasse pedaços de músicas para juntar e criar algo novo, mas com os elementos necessários para que o público reconheça.

"Eu transformo as canções. Tem show que eu toco quatro músicas sem parar, usando meu catálogo, mas, mais do que ficar reproduzindo, eu acho que fica soando como se fossem tijolinhos sendo colocados em um prédio. Agora eu tenho tocado 'Longe demais' com 'Milonga [Orientao]', por exemplo."

 

O cantor diz fazer a coisa com um certo cuidado, para não se perder nem deixar a música sem rumo. "Eu acho que consigo sobreviver ao risco da autorreferência. É bacana oferecer um tipo de leitura diferente."

Novas velhas ideias

O mais recente trabalho em estúdio de Gessinger é o compacto em vinil que tem "Pra ficar legal" de um lado e "Faz parte" de outro. As duas canções são regravações. A primeira foi gravada no "Surfando karmas & DNA", em 2002. A segunda é de 1997, foi gravada no disco "Minuano", primeiro sob o nome Engenheiros do Hawaii sem Carlos Maltz na bateria.

 

Gessinger diz ter gostado tanto da experiência de lançar um compacto em vinil que não descarta uma nova empreitada na mesma direção. Um trabalho inédito deve ser finalizado no primeiro semestre de 2017.

 

"Por mais que eu defenda essa ligação entre as canções, de uns anos para cá, por mais que eu reverencie a coisa do álbum, não sei se é mais relevante essa coisa do álbum", afirma.

"Sinceramente estou em dúvida sobre como vou lançar o novo trabalho. Dividir o compacto em duas canções foi bem legal. O ambiente anda saturado de informação. Talvez seja legal lançar duas músicas. A música tem isso da coisa em par, permite o stereo, andamento quatro por quatro", declara o músico.

Longe demais

Gessinger tem um público leal desde os tempos da formação clássica dos Engenheiros e tem agregado cada vez mais fãs. Nos shows, eles cantam todas as letras, mesmo quando o músico faz suas alterações na hora, ao vivo. Para não parar no tempo e cair em um esquema mecânico de fazer canção, ele busca abstrair a ideia da popularidade.

 

"Tenho uma perspectiva, mas tento não pensar para não entrar no piloto automático. A vida me levou a ter relação com pessoas que eu nunca conheci. O último cara que pensou em ter uma vida pública fui eu. Essa comunicação à distância é, de certa forma, confortável", diz o músico.

A relação com o público também mudou nesses mais de 30 anos. "Antigamente, chegar nas cidades era diferente. O público conhecia mais as músicas de sucesso, as que tocavam em rádio. Hoje, com a internet, tudo mudou. Tu nunca sabes o que vai acontecer no show. Tem aquela música que não toca em rádio, mas que tu chegas para tocar e todos cantam."

 

Gessinger reconhece que mudou com o passar dos anos, até na relação com a imprensa. As cutucadas em outros artistas, por exemplo, ficaram para trás.

 

"Era coisa de guri bobo. Não tenho a menor conexão com essa coisa. Essas entrevistas às vezes duravam uma tarde inteira e o cara pinçava ali no meio de uma fala, que às vezes era uma brincadeira."

 

Depois de tocar com tanta gente, gravar tantos discos, fazer tantos shows, Gessinger diz que absorveu algumas lições anos e que aprendeu a conviver com a timidez. "Não posso falar como as pessoas me veem, mas com o tempo tu vais aprendendo a ser parecido com o que tu és mesmo."

 

A própria relação com o público acabou mudando. Se nos primeiros anos, Gessinger subia ao palco e chegava às vezes a entrar e sair sem sequer dar boa noite, hoje ele interage mais com a plateia e parece até se divertir mais. "Tenho 30 anos de estrada. A coisa mais hipócrita é dizer que tu és o mesmo."

Mesmo assim, ele pondera sobre a postura dos músicos hoje em dia, que viraram mais animadores e menos instrumentistas e cantores. "Os artistas ficaram MCs. Várias bandas são assim. A questão é o que o público espera de um cara que está lá em cima", diz.

 

"Tem outras bandas, como as do movimento punk e o Pink Floyd, que são antagônicos entre si, mas que chegavam e tocavam simplesmente. O cara do Oasis (Noel Gallagher) toca até hoje [assim, sem conversar muito com o público]."

 

Música e letra

Com atenção especial às letras e canções que fazem citações a Sartre, Camus, Ferreira Gullar e Umberto Eco, entre outros, Gessinger tem se aventurado também no ramo da literatura. O artista lançou cinco livros entre 2008 e 2013 e mantém um blog na internet. "A palavra escrita é anterior à cantada na minha vida."

 

O primeiro trabalho na área foi "Meu pequeno gremista" e o mais recente, "6 segundos de atenção". "A literatura tem essa coisa de ser mais introspectiva, a palavra tem importância central, há essa zona cinzenta, pôr o texto em uma folha, é diferente de expressar por música, que leva em conta a forma com que a palavra é falada, cantada, como ela se encaixa na melodia."

Segundo o músico, é mais fácil que uma letra de música seja usada em um texto de livro do que o contrário. Duas de suas obras literárias levam nomes de músicas dos Engenheiros, "Pra ser sincero", de 2009, e "Mapas do acaso", de 2011. "É mais difícil ter citações que viram letra. Música é mais sutil."

 

Mesmo com a ampliação do horizonte artístico, Humberto Gessinger diz que tem concentrado esforços no lado instrumentista. "Nunca me dediquei tanto à coisa da minha música quanto nos últimos anos. Tenho tocado todos os dias, buscando manter os músculos flexíveis, buscar novos instrumentos."

 

Com instrumento em mãos, harmônica ou microfone, um computador ou uma folha de papel com caneta em mãos, o soldado do "exército de um homem só" segue na sua "infinita highway", "louco pra ficar legal".

 

 

Fonte: Portal G1 - Foto:  Jocelito Camargo

COMENTÁRIOS